4 de fev. de 2009

Vertigem

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O relato digitado foi narrado a mim por um colega de faculdade que não só permitiu como também desejou a publicação desta história de acontecimentos imprevistos até mesmo para os dias de hoje.

Livre de toda ausência, Arcádio convivia com sua bela esposa, nomeada Teresa, há confortáveis cinco anos. Durante o período, a rotina de ambos foi costurada em tecido permanente, durável e necessário, como a lã. Arcádio despertava, olhava para o relógio analógico exatamente às 07:30, espreguiçava, para, às 09:00, secretariar o dia de outros funcionários de um fast-food do shopping local. A esposa permanecia em casa em companhia do melhor amigo do homem, de alcunha Félix, a cadela companheira de todos os dias. Esse caso, então, era a melhor amiga do homem. Às 18:00 Arcádio chegava a casa e durante a semana a existência do casal era preenchida majoritariamente por sexo. Este não era adornado de frases e gestos piegas ou românticos. Uma vez, Arcádio tirara sangue da boca dela. Com essa mão: ela pediu bate, ele bateu. Com tudo. Em cheio. O sangue dentro da boca, ela não o deixava escorrer, nem mesmo cuspiu, mas enquanto a penetração estava latente, o líquido viscoso borbulhava feito lava emergindo de fresta vulcânica. Com selvageria, era assim que os cônjuges era um casal. Pouco dialogavam, mesmo não era necessário. Apetecia às vezes um afago no cão, um comentário frívolo sobre fatos corriqueiros. Apesar de o carisma ser fator inútil para a relação do casal, por dentro, naquela região invisível que os filósofos chamam de alma, a necessidade do outro ocupava área precisa.

O que o subjuntivo colega quis que fosse contado começa adiante.

Desgraçadamente, Teresa saiu de casa para passear com Félix e faleceu. Se debaixo de uma carreta sua cabeça teve o último pensar ou se bala achada perdeu-se em sua nuca, nem eu nem o narrador do caso sabemos. Não nos foi descrito a causa mortis.

Findou-se que Arcádio passou a morar sozinho. Bem, nem tão. Havia Félix. Arcádio sofreu com a morte de sua esposa como qualquer ser humano. Marcou seu luto com silêncio, saudade, desesperança. Deitado na cama que agora era espaçosamente fúnebre, pensava nos momentos pretéritos com Teresa... Em dormindo, sonhou que caminhava por um labirinto feito de ruas e casas, como num bairro residencial, e era puxado por uma corrente atada a seu pescoço, como um cão. Ele era um cão. Viu que cada pessoa no labirinto era acompanhada de um cachorro, e este parecia farejar algo atrás das muitas portas. Assim, cada porta era saída específica para cada perdido presente. O nosso cachorro, i.e., Arcádio, farejou algo familiar no ar e perseguiu o olor que terminava numa casa dourada e cuja porta era dupla. Logo que seu portador a abriu, o cão-Arcádio entrou em um recinto holofotemente iluminado, recebendo ovação e palmas. O primeiro objeto que viu foi um microfone unido a um pedestal, foi quando pensou como iria falar/latir nele, se fosse preciso. Porém, ao olhar para si mesmo, observou que era humano de novo. Caminhou, avistou grande plateia feminina sentada e percebeu: o ambiente era um tanto conhecido. Estava no programa Porta da Esperança, com Sílvio Santos. Arcádio ia perguntar ao apresentador o que fazia ali, mas nesse ambiente quem faz as perguntas é o Sílvio — não é, Lombardi? Má’ oee, diga, Arcádio, quem botou esse nome em você, seu bisavô, ele estava de sacanagem, não estava? Não é um nome muito, certo? Nã-não, Síl... Você amava sua esposa, Arcádio? Sim, cla-claro, Sílvio. Então me diga, Arcádio, por que a deixou sair sozinha àquele dia? Você deveria cuidar melhor do que é seu, seu palerma! Lombardi, será que ele merece algum prêmio? Merece, patrão. Então vamos abrir as Portas da Esperança! As portas se abrem e eis que Teresa surge usando um longo vestido preto com um nada discreto decote. Arcádio vai a seu encontro, abraça-a, beija-a e antes de sentir pressente: os lábios dela se soltam na boca dele, definham. Sobe um inebriante cheiro de carniça. Antes de acordar assustado, ele ainda ouve Sílvio falar: É, Lombardi, você acertou, ele mereceu...

O último instante de sua vida ela estava com Félix. Com esse instantâneo de pensamento somado ao pesadelo da noite anterior, sua imaginação deu início a uma série de bizarrices imaginativas. Entre elas, pensou nas muitas religiões que habitam o Universo, e lembrou-se de uma com destaque: Espiritismo. E se a alma de Teresa encarnou em Félix? A raça da cadela era labrador. Arcádio resolveu testar sua espirituosa ideia chamando o animal e dando tapas em seu focinho. Félix reagiu da forma como qualquer animal domesticado responderia à “brincadeira” de seu dono, lambendo-o. Arcádio, em sua loucura, viu na atitude do animal um sinal de que era sua amada re-encarnada em Félix. Daí, começou a brincar com a cadela com peculiar fascínio, pulando na cama, correndo pelo quarto... Até se cansarem e deitarem. Dia seguinte, o homem desposou (sic!) a cadela em seu leito e, amiúde, passou a fazer sexo com ela todas as noites. Certa madrugada, Arcádio, insone, despejou sedativo no leite de Félix. Transou. Cortou a pele da coxa traseira do animal, e mastigou a carne até o osso e assim doravante até a morte de Félix.

Quem me contou o caso exerce a profissão de enfermeiro em um hospital psiquiátrico (pudera!), onde Arcádio permanece. Ele, o meu confidente, soube da história pela boca do próprio autor da façanha. Arcádio foi descoberto por seus vizinhos que sentiram o veemente odor pútrido de Félix. Eles contaram que ele estava deitado em seu leito, e vestia apenas uma cueca. A cadela... Bem, da cadela só havia a carcaça com restos de carne que provavelmente Arcádio não conseguira arrancar dos ossos.

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2 comentários:

Josely Bittencourt disse...

e viveram félix para sempre... rs putz, e esses nomes, e o silvio santos "Má’ oee" kkkkkkkkk

ah menino danado vc achou hein!?!

Graça Pires disse...

Um conto que nos pega desde a primeira linha. Muito bem contado.
Que loucura!
Um abraço.