22 de jan. de 2009

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Como se soubesse que é bendita pelos enamorados, a lua sorria no céu negro acompanhada pelas estrelas que, uma a uma, resplandeciam. E sobre as folhas secas de uma castanheira qualquer, o casal altercava. Sobre sexo, ciúme, um pouco do de sempre. A menina aceita a explicação — desconfiada; Fernando aparenta ter saído de um túmulo, Brunela pensa, não quero outra discussão, a última se aproximou da linha imaginária do precipício que seria uma separação. Motivo: Brunela havia marcado um trabalho escolar de anatomia, a dois, com um menino de sua sala. Passional, Fernando não aceita, daí a briga. Após xingarem Deus e o mundo e insultarem o Diabo com seu próprio nome, cada um seguiu seu rumo, fadado e particular.

Mesmo depois de fazerem as pazes, Brunela não soube o que aconteceu com o namorado àquele dia. O próprio Fernando não tinha certeza. Ela pensava que o motivo da apatia sexual dele era a briga e esperava do tempo o remédio para a ferida. Porém as semanas passavam e Fernando estava cada dia mais taciturno, sua palidez assemelhava-se a de um vampiro e, isso ele não podia negar, havia emagrecido. A frequência com que os dois se viam diminuía do mesmo modo que o aspecto tétrico de Fernando aumentava. Às vezes, Brunela sentia uma inquietação no namorado como se ele quisesse lhe contar um segredo, mas ela não forçava nada, esperava o momento certo.

Fim de tarde, o sol se aproximava do horizonte e os dois caminhavam pela praia, o vento sacudia os cabelos de Brunela ao mesmo tempo em que a areia batia em suas pernas. Fernando começara a narrar sua história.

Disse que, quando saiu da casa de Brunela, à data do desentendimento, andou pela orla da praia bebendo até perder o domínio do corpo próprio e tombou-se ali mesmo devido à embriaguez e teve um sonho. Curioso é o fato de o sonho se passar no mesmo local em que cochilara. Nesta quimera, ele acorda em frente ao mar, a Lua Cheia ilumina a água baça e o silêncio inquietante o faz tremer. Somente o barulho das ondas ele escuta, quando outro som vem do mesmo local, como se a água fervesse. Então ele observa as borbulhas se moverem a sua direção. Seis anões carregam uma enorme concha rosada, eles parecem ígneos, pois toda a água ao redor deles ferve como se um vulcão estivesse surgindo. Param e depositam a concha sobre a areia, ela se abre e a única coisa que Fernando vê, a priori, em seu interior, são mechas de cabelo que parecem ter vida própria e se movimentam numa dança libidinosa. Depois se abrem, revelando sua origem. Uma mulher nua sai de seu abrigo calcário encarando Fernando que, movido por excitação, caminha languidamente alterado. Tudo que Fernando deseja é cair nas pernas daquela deusa e satisfazer sua concupiscência. E ela o sacia. Logo depois fala como cantasse:

Expulsa do Jardim fui
No Oceano há meu refúgio
A terra não me comporta
Traze a mim muitas mortas

De Eva já fui chamada
De Vênus, a enciumada,
Mas há já muito sou Lilit
Prima, e verdadeira Filha

Deveria continuar a história, mas me parece que ela terá seu ponto onde todas se encerram: no “fim” (já entenderão o porquê das aspas). Uma de minhas compreensões de contos, romances e poemas é a de que não se deve pôr final, mas sempre fomentá-los de exageros ou de faltas propositados que não demonstrem fim nem começo, contudo o modo de construção básico ou ilimitado, fantástico ou argumentativo... Talvez como um jogo de cartas em que não se lembre quais foram as primeiras da rodada e muito menos quem ganhará a partida, mas, conforme a baliza do cartear prosseguir sem certezas, a inexatidão do jogo o transforme em menos existencialista do que a aritmética planejada por cada jogador. E porisso mesmo mais emocionante e paradoxalmente racionalista.

Continuo a escrever aquilo que li outrora de algum filme; o que interpretei de um poema que nem me lembro, mas que se encontra arquivado sob a pátina de minha memória; de romances que me lembro da história, e não recordo nomes de personagens e nem do título. Prossigo o que não pode ser acabado, porque o início existe tão longínquo. Todos somos autores e poetas, decerto há os passivos; civilizadores de um mundo inacabado (ora, então construtores e destruidores de nosso mundo, o que o torna eterno); imaginadores de Deus e deuses. Há mais dentro do oculto do que no difuso. Consoante vamos implodindo nossa degradação, a criação irrompe em lágrimas catárticas, em risos esquizofrênicos ou em memórias que não comportam apenas uma qualidade, mas substantivos, neologismos, metonímias, metáforas...

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3 comentários:

Zzr disse...

Nada como um dia após o outro, então? Essa sua escrita apaixonante deve precisar de um descanso de vez quando, Luiz. Mas, também, se for preciso que você se sinta sempre assim para voltar e escrever brilhantemente como aí está, que isso aconteça sempre. Lembro-me bem de Clarice Lispector quando disse que passava meses sem escrever uma palavra, como se estivesse morta. E, logo depois, "revivia" em grande estilo (minha opinião, apenas).

Segredo meu: quando me sinto assim, posto coisas antigas, apesar de postar bem pouco lá...

Beijão!

Mésmero disse...

Puxa, Sarah, agradeço o elogio.

E, olha que máximo, temos algo em comum, esse... texto-conto-ensaio-pensamentório nasceu de um conto que escrevi há mais ou menos um ano atrás.

Não sabia dessa da Clarice.

Graça Pires disse...

Um conto cheio de fantasia e magia, com um fim aberto à nossa imaginação ou para continuar outro dia. Gostei imenso.
Um abraço